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IÇAR


Eu queria escrever sobre a visão que a gente tem quando estoura uma onda e de espuma o mar fica todo branco, de sentir o corpo marear depois de passar o dia submerso, da sensação de mergulhar a qualquer hora depois das seis e meia, de quando a Gal sorri depois de uma soneca longa que foi o suficiente pra descansar e os olhinhos dela combinam com a cor do mar por isso a paisagem fica mais linda ainda e aí que me desmantela. O tempo entra em uníssono com o mar e a vida passa mais devagar, já que tudo tem corrido tão depressa e do dia que minha bolsa estourou pra cá já tem tempo suficiente até pra minha filha comer côco na praia. Mas é, ainda não consegui, me sinto mesmo imersa em água feito li outro dia e talvez por isso as palavras boiam dispersas umas das outras e não se encontram, não me encontram, enquanto me esforço na tentativa por construir um barco seguro o suficiente pros meus medos, peligroso que é; sus segredos. Desvendar, renunciar. Ancorar, içar vela. Tamara postou outro dia que pensou sobre os perigos da viagem, mas se esqueceu dos perigos de ficar. E a gente por acaso fica? Se a gente não acontece com a vida é ela quem nos aconteceu, o que torna mesmo bem complicado pensar nos perigos de ficar enquanto se corre uma baita duma maratona, a vida. Não tem alguém pra te ensinar a boiar, mesmo que te digam enche os pulmões, solta o corpo, tem um dia que você sente mais livre um pouco do controle e quando vai ver aprendeu. E perde absolutamente a capacidade se estiver se afogando, sem dúvidas.
Talvez se eu içasse pelo menos metade das preocupações que me navegam sobrasse algum espaço pra pescar as palavras pro jantar. Ao contrário do que eu disse sobre o castellano, do inglês quase não gosto de
expressão nenhuma, sempre acho que soa com pinta de colonizador mas tem essa que diz save a room não pra falar de espaço, mas também pra isso e faz tornar a coisa materializada, daí eu adoro, porque é mesmo um dispêndio tentar salvar um quarto inteiro pra garantir que haja um tempo em separado pra se manter com o texto à pino. Por falar em dar conta, como se fosse dormir com elas fui nadar junto delas a ver se me achavam, se me inundavam. E se for pensar bem nisso, a ideia de querer puxar âncora dos medos seria só somar mais uma pra lista de afazeres por dar conta, tá vendo, boiar é bem mais difícil do que parece quando a gente olha alguém lá flotando por cima d’água, esquece que tem tudo isso se passando dentro da cabeça dele. O mar é mesmo a metáfora, puxa a gente pra trás, pro fundo, pra depois sim jogar pra frente e ainda faz dando caldo. A gente tem essa ilusão, do controle, da emancipação das coisas umas das outras, mas não percebe; é tudo parte duma engrenagem que gira junto. Bem nessa hora toca não sou em quem me navega, quem me navega é o mar,  ainda bem que não tenho barco, porque mesmo se soubesse pilotar, eu bem sei não seria eu quem faria, mas sempre um Outro. Será que todo mundo também tem esse medo de soar redundante? Prefiro a aposta que sim porque suas palavras vem embebidas de quem nós somos e passar a limpo faz a gente emergir e se pôr a superfície tudo que a gente é, e que mesmo quando se diz a ou b quer ser dizer olha aqui no fundo e me vê se tiver what it takes. Essa também gosto, diz o que pega e também do que precisas — de precisar e de precisar. Do que é necessário, de ser preciso. Minhas palavras não me pescam feito um anzol, digo o que tolero, mas mesmo assim eu espero que te isquem, é pra isso que servem afinal, se não pra que mais.


GRAÇA


Qual é a sua graça? Amadeu. Eu? Eu não, não consigo acreditar que existe alguma força superior ou sei lá o que quando tem gente morrendo de fome no mundo. Não, eu tava só te dizendo meu nome: Amadeu.

E ele disse gostar de mim de graça, mas cômo? Se Deus resolveu por botar justo no seu, dentre tantos umbigos no mundo, toda a graça? No final ele fez mesmo o que até Deus duvida: me fazer lembrar de discordar — talvez ele exista né. Mas é lógico, eu vi Jesus Cristo no céu e nem era no horizonte, que não tem nem em São Paulo, nem em Brasília — eu também duvidaria se me ouvisse falando isso em voz alta, por isso escrevo.

"De tantos umbigos que já passaram por aqui tu acha mermo que ele ia botar justo no meu?" Não-é-óbvio-que-sim? De graça. Sabia que meu primeiro nome significa cheia de graça mesmo? Como você sabia? Eu nunca tinha parado pra pensar nisso — menti, claro.
Eu vi Jesus por entre as lacunas das construções. Isso é muito romântico pra não dizer prepotente da Igreja Católica. Penso que deve ser mesmo muito alucinante essa atmosfera pra-gringo-vê quando eles vêem. Penso quem é esse merda de autor do Cristo que fica olhando a gente de cima de um morro com ar de superioridade sob o pretexto de estar abençoando a cidade maravilhosa quando na verdade ele tá lá soberbo e inalcançável nos lembrando que não importa o quanto a gente tente ninguém nunca vai alcançar. O budismo me parece um pouco mais racional, aquela coisa de meditar até chegar no nirvana, na iluminação, pelo menos a gente pode se arriscar tentar. Mas sei lá também né, quem sou eu pra falar alguma coisa. De novo volto pra cá, igual na hora que eu olhava o sol se pôr no que me pareceu o chakra coronário de Cristo deixando o céu dourado dourado, enquanto eu agradecia 
mentalmente, pela primeira vez em muito muito tempo (ou sempre — mas não quero soar trágica), alguém me interrompeu do fundo do meu id "nossa tô morto". E eu também tava, mas na minha cabeça eu só pensava em como o mundo de dentro pareceu confortavelmente em sync acontecendo no mesmo ritmo do mundo de fora. Começou ontem na verdade mesmo né, entre o reggae e a melhor caipirinha de maracujá com limão que vocês vão provar na vida. Fui livre, igual o avião que gravei decolando ou os urubus que sobrevoavam a vista ao redor e que, por ventura ou casualidade também dei a sorte de conseguir registrar — em fita e tudo mais. Mas teve aquela hora perto das onze quando a gente falou do Hans Staden na praia logo depois que eu terminei de ler o Manifesto por uma Arte Revolucionária Independente, do Breton e do Rivera. À medida que vocês iam narrando os acontecimentos o filme foi passando na minha
cabeça — ele vivendo como se fosse nascido e criado aqui no Río (lê-se com acento no í igual um carioca falaria), sei lá, casou e tudo. Eu devia ter uns dez anos quando li viagem ao Brasil, mas aquilo ali ficou guardado em algum canto da minha memória até que veio alguém e puxou a gaveta. Maluquice; não sei se meus pais me botarem pra ler coisa assim aos dez, ou eu acessar essa memória assim do nada. Obrigada, hoje fiquei tão feliz por quem eu fui. Sinto que — só — graças à vocês. Aí ó esse papo de graça de novo.

Hoje eu subi no trigésimo quarto andar de um prédio do centro que dava pra ver a cidade inteira. A Ponte Rio-Niterói tava fechada porque um cara armado enfiou o cano na própria boca perigando se matar, mas graças a Deus saiu ileso — e ainda assim não deixou de atravancar o trânsito de todo o Rio de Janeiro no processo — se matar é a maior burocracia, coitado, se eu o conhecesse teria avisado. Lá de cima chorei
um pouquinho disfarçada, fiquei quietinha de longe na minha, no meu mundinho — só eu e Deus. Lembrei da última vez que senti o silêncio assim tilitando ou brilhando no meu ouvido junto do vento geladinho que pegava no meu cangote recém-tostado de sol por entre a fresta de pele exposta pela gola da camiseta que eu vestia. 
Pra dizer bem a verdade, antes disso na verdade, teve a hora que o moço do milho, Oliveira, e o moço de camisa do Flamengo e com um engradado de cerveja vazio enfiado na cabeça que — acho eu — pra proteger do sol quente que abriu pela primeira vez depois de dez dias de chuvas torrenciais justo no dia que a gente veio. Sorte. Enfim, eles dois trocaram entre si um prato de milho por uma bebida geladinha de dentro do cooler azul e eles almoçaram juntos na areia da praia, bem na beirinha-quase-mar onde o carrinho rola melhor. Aquilo soou muito mais bonito ou
cúmplice do que qualquer janta na casa da minha avó em noite de Natal  —  feriado que detesto, seguido por aniversário. Contei a história da Maria Baderna e aprendi em qual bar nasceu a Bossa Nova, na Av. Presidente Wilson. Já na Beira Mar visitei a casa do Amadeu, onde além dele também já morou Manuel Bandeira ou o Portinari. O Seu Freitas que abriu o céu pra gente disse nem se espantar mais, dezenove anos depois  — já acostumei. E eu mesma duvidava até se aquela cidade existe mesmo ou se realmente Deus não existe mesmo.

E eu tava bonita, queimada de sol e com três vezes mais sardas que o normal, com marca de biquíni toda troncha, mas bonita. Pena que o camarão que o Wagner comeu não fui eu.


BEIJO TRIPLO


Você lembra daquele carnaval quando a gente viveu nossos corpos no mundo sem pensar no pesadelo que os próximos anos seriam?
Quem diria que essa viagem seria com passagem só de ida, numa van clandestina daquelas que a gente vai rezando pai nosso o caminho todo, mais fiel que crente na hora que quer casar cedo pra garantir de transar logo. Voltando pra van: no volante o presidente genocida e o vírus que tirou daqui 600 mil bocas que a gente poderia ter beijado em um outro cortejo.
A gente acordava de madrugada, tomava um café e ia direto pra qualquer bloco que surgisse do nada. As noites sem dormir eram na conta do tesão de viver; não da preocupação se ia ter como viver até o final do mês.
Logo os BR que sempre tivemos fama de saber viver, eu lembro até de um cantor que falava que era preciso mesmo saber viver, mas até ele foi cancelado — e com razão — quando a gente descobriu que ele foi um dos que apertou 17 e acabou por assinar
tantos atestados de óbito desde aquele dia de eleição lá em 2019. Pra tentar não surtar nesses dois anos de lá pra cá, além da terapia e os ansiolíticos, também foi preciso lembrar de sonhar. Desde então tem sido mais ou menos assim: se abastecer de saudades de uma mistura de coisas que vivemos até aqui e que nessa batida de côco criam todas as histórias que a gente ainda vai viver de vacina no braço e biquininho socado no próximo verão embalado por um piseiro tocando no paredão mais próximo de você.
Sabe o que é MUITO Brasil mesmo? Carnaval, cerveja gelada, beijo triplo, suor e suruba; mas bem mais que isso: Brasil é ter em comum essa dor tão grande que nos une mais do que quaisquer outras duas línguas se encostando.
Se não dói em você, você não entendeu nada. O Brasil não é pra você.
Motorista, pára, que a gente vai descer na Praça XV com pouca roupa, mas botando muita fé no Brasil que há de ser, que arde ser e que vai ser se a gente impeachmar o Bozo. 


JENNIFER


O cheiro da chuva no mato, da terra molhada e do café quente, embrulhado no lenço de flor que cobriu o sol de uma vida por colher e que hoje vive na minha gaveta de sentir.

Oi, Jennifer. Tudo bem? Como eu vou me enfiar no meio das suas palavras, senti que nada mais justo do que fazer disso um diálogo. Me conta de você; você faz análise? Eu tenho certeza que, se você todavia — ainda — não faz, amaria fazer. Me apeguei ao final — a tal da gaveta de sentir; qual o tamanho exato dela? Mas qual a metragem exata? É de madeira? Ou de carne e osso? Eu tô trabalhando aqui em uma gaveta pra chamar de minha, mas ela vai precisar de um metro e cinquenta e sete, feita do nosso âmago mais profundo — a pele; Sentir na pele, no corpo, no físico, vêm sendo meu maior desafio nesse último ano que passou. Presa dentro de casa por tempo demais, minha cabeça pifou. Ufa. A Paula Jacob, sabe quem é? Me disse assim no domingo passado: a nossa pele é o nosso meio de sentir as coisas, nosso contato com o Mundo —e eu gostei tanto que até anotei.
Quando encostei a minha linguagem na sua me teletransportei pra algum lugar inventado, como as lembranças-não-tão-claras do que a gente sonhou na noite passada: uma mistura de sítio de um primo do meu pai lá em São José que eu ia muito quando criança com o cheiro do Cerrado - o meu lugar preferido que é a Chapada; e o cheiro de café depois do almoço, como meus pais sempre tiveram o hábito de tomar e eu adoro, mas quase nunca bebo — porque quase sempre me dá piriri - sabe aquele ditado "um café e um tabaco..."  [gesto de bater os dedos anelar(?) e indicador um no outro].
Por fim, eu imaginei essa cena linda de um lenço de seda florido, meio transparente e muito colorido, em tons de laranja, amarelo, verde e rosa, caindo no chão úmido e sujo de interior — terra vermelha batida e cheirosa, como se flutuasse à la Johnny Hooker. O sol depois da chuva de verão em meados de setembro ilumina meu rosto e esquenta meu nariz, até então congelado. Você também sentiu daí o ruborizar das maçãs dos nossos rostos e das macieiras do quintal da casa do Othinho?


40 GRAUS


Eu tinha acabado de sair do banho no calor de 40 graus que fazia em Nova Délhi. Você não tava em casa, mas secretamente eu desejei que você chegasse. Como um ato falho, você abriu a porta que eu não tinha trancado de propósito. Desviamos os olhares pra algum lugar em comum nas busca por viver os nossos corpos no mundo antes dos nossos pensamentos cartesianos. De lá pra cá já te beijei algumas, pra não dizer muitas nem incontáveis vezes na minha cabeça. A ideia de passar dessa eterna preliminar que se estende pelo tempo pra línguas entrelaçantes é tão perigoso quanto erótico.


CONVITE





A sensação do toque de um tecido meio solto mole ou fluido direto no meu corpo sem costura nenhuma me prendendo ou cortando a minha pele. Depois a sensação do suor e do calor em contato com o gelado da sua mão quando você coloca por baixo do vestido em algum lugar entre as minhas costas e a minha perna e que tem uma cor que dança entre o azul do céu do Pará logo depois que o sol se pôs no meio do Tapajós e o vinho seco e amadeirado que a gente vai tomar amanhã se você aceitar esse convite.

AFETOS


Eu me lembro bem do choro no segundo que antecedeu a enchente na primeira vez que senti no corpo antes de ter tido tempo de racionalizar - tal qual o iluminismo - até os meus afetos. Quando eu ia imaginar que essas lágrimas transbordantes pra além do que me foi possível conter. Chorei sem dizer por onde, mas esclareço: pelos olhos. O erotismo nas minhas palavras não narrou putaria nenhuma, falei bastante sobre dor, na verdade. Mas não se enganem, também, essa não foi a vez que eu perdi o cabaço. De lá pra cá tenho gozado muito mais. E eu pré-gozo tantas vezes quando vocês retribuem meus afetos e o onírico do que eu idealizei atravessa a atmosfera da realidade do meu corpo. Agora sim falei de putaria.

PORNOGRAFIA


Não poderia começar de outro lugar que não meus pés recém tatuados no tornozelo esquerdo, porque são eles que me levam de encontro aos meus desejos, de um jeito tão literal que se isso fosse pornografia essa cena seria das mais explícitas. Que baixaria o ato de caminhar ao seu encontro buscando saciar o comichão que sobe formigante pelas panturrilhas, depois de nascer onde que era, supostamente, pra aterrar; mas que tem sido por esses dias, o combustível pra materializar todos


os jeitos que a gente já transou na minha cabeça. O comichão agora tá por algum lugar cerca da parte mais ou menos de trás do meu joelho e é impossível não me lembrar de quando o Lucas me disse que quem beija as costas da sua coxa vai - definitivamente - comer o seu cu, não por falta de uma buceta pra chamar de sua. Me distraí com flashs de mãos perdidas em algum lugar da minha cintura pra baixo.

AN PASSAN


Teve um momento que eu me senti ali, eu tinha entendido a lógica de como aquelas pessoas se relacionavam. Como se em um determinado momento eu tivesse me permitido ser vista, e eles me olharam mesmo. Eu já sabia o nome das pessoas todas e todo o resto que eu tinha inventado dentro da minha cabeça. Na primeira hora que me dei conta que eu tava em outro lugar que eu nunca tinha ido antes eram 7 e pouco e a gente cruzava a cidade de um lado pro outro, andando por ruinhas que não são conhecidas pelos seus nomes. Os turistas vem lá de cima e vão descendo a rua principal, sempre an passan. Foi nessa mesma hora do alto do banquinho de frente pra arena, num domingo vacinado de feira e depois de passar um dia dos namorados dos mais lindos sem namorado algum e finalmente comigo, que eu senti a chuva no meio do auge da seca do cerrado e a pata esquerda da Kali


desinchou, foi quando eu me vi como parte. Falei pro Lucas que não saberia escrever por falta de vocabulário pra descrever o que depois chamamos de indústria da cura, igual aquela série do Netflix que as pessoas bebem óleo essencial. Eu olhei quase que sem querer dentro do olho preto preto de um moço que depois chamei de misterioso e que eu nem sei se era daqui mesmo, mas o pretume do olho não era de kajal — era de tanto cílios que ele tinha. Eu entrei naquele ecossistema como se nada. A gente foi dormir as 8 no dia anterior, e acordou as 8. Eu depois de três dias assentando tratei de não deixar acentar nada e resolvi inventar tudo isso pra fazer o tempo passar mais rápido quando a gente já tinha criado raiz naquele banco de praça, onde pareceu que a gente tinha ficado por um dia todinho. Tinha alguma coisa ali que por mais que a gente tentasse sempre puxava de volta. Depois eu volto.

ADORMECIDO


“Ai / meu pé dormiu”


Mariana disse que eu tenho um jeito bonito de me expressar, não só nos textos mas até nas pequenas coisas que eu falo. Ela disse que eu digo que meu pé dormiu como se ele não estivesse apenas tirando um cochilo, mas sim num sono profundo cheio de sonhos, e por ora não pudesse funcionar, ao invés de só dizer como todo mundo diria, que ele estava dormente ou adormecido. Ela disse que me assiste achando bonito. Me senti um filme, não em um, mas como se eu mesma fosse a película, eu não era um dos frames que compõe o rolo que a gente encaixa no projetor, mas eu era mesmo o rolo todinho aos olhos dela, e mesmo mofado em alguns trechos, ainda assim ela disse “bonito”, foi essa mesma a palavra que ela usou. Sinto como se ela estivesse me ajudando a converter tudo pra pendrive.


PISEIRO


Às quinze e quarenta e pouco eu saí de lá avoada que sou sem meu casaco nem meu carregador. Deixei tudo espalhado por aí como quem marca território ou como todos os caquinhos que ficam quando estoura um vidro temperado. Nem parecia que o carro tava cheio, o Jean fez uma parede de mochila com samambaia entre eu e a moça que compartia o desejo de calma comigo. A gente trocou um olhar e uma risadinha de cima do muro entre nós e na rádio tocou piseiro do início ao fim e eu pensei — ainda bem que eu sou fácil de agradar, Deus me livre ser rockeira. Até agora são 15 e quarenta e pouco e eu parei de ler o peso do pássaro morto que é escrito em estrofes feito um poema que me faz perder a atenção vez ou outra mas eu sempre volto e
releio quando vejo uma palavra impressa na folha igual quando ela disse que a Carla morreu. Lembrei de mais uma coisa que eu perdi e era uma calça que eu adorava. Pelo menos não quebrei taça na casa de ninguém. O livro falava de mortes, o que eu tenho vivido de acordo com Freud sei lá. Mas acabar foi bom como se os meus próprios desfechos finalmente fechassem de vez e me lembrassem de olhar pra estrada linda que liga Brasília ao Paraíso. Até agora foi mesmo a viagem inteira que tocou piseiro, não é que eu acertei? O céu tá lindo igual sempre e olha que nem é fim de tarde ou início de manhã. Senti um montão de coisa lendo, morte, tesão, horror e saudade — ainda bem que isso era tudo só invenção na história do livro que a Beta me emprestou.


CARACA


Caraca, é muito doido como a gente vive tanto e renuncia de umas coisas pra poder viver outras e depois o que nos resta é saudade de tudo. E no fim — ou no começo; ou a qualquer hora — sempre ta tudo bem, a nossa vida é isso mesmo. um emaranhado gigante de tudo que a gente viveu. às vezes me pego esperando quando a minha vida vai começar, olha que doido. já vivi de monte. Eu sempre tento definir o que cada coisa é, mas isso nem existe, o que foi foi só tudo que eu senti. Não tem tanta importância assim essa necessidade de dar nome as coisas, a gente sempre vive prestando atenção em cores que não sabe o nome, mas as cores na verdade talvez sejam tudo que a gente sente, literalmente.  
Outro dia escrevi que sentir tudo o tempo todo é como quando a gente gira um arco íris e todas as cores juntas se tornam um borrão branco, uma quietude estranha, mas eu agora sinto cada uma dessas cores que eu nomeei como trelelê. também, coincidentemente ou não, li sobre um vórtice de cores que se confundem com as diferentes frutas dentro de um liquidificador. Eu sempre penso — e nunca falo — sobre como tudo se conecta na minha vida, e eu recebo mensagens de todos os lugares que me dizem o que eu preciso naquele momento, seja doído ou não. sempre é. E também igualmente necessário. Fico aqui no mundinho da minha psique questionando tudo e tentando encontrar o começo e o fim das 
coisas, ou as margens robustas da vida, dos fatos, coisas essas que nunca poderiam existir. A vida é tudo isso batido no liquidificador, mas aí nossa cabeça cria esses rótulos todos, que coisa mais sacal. Fui feliz em tudo que vivi, tanto quanto fui triste também, a graça tá nisso. Hoje minha vontade era de falar com todo mundo que eu já falei, que já senti, que eu já beijei, que eu já vivi, que já chorei, tomar um café, saber como foi o dia, ou mesmo como tem sido a vida de lá pra cá, desde a hora que a gente parou. Sinto saudade de tudo. Parece que eu sinto que preciso falar tudo isso e aceitar tudo que eu sou a partir das coisas que vivi, pra só assim poder me permitir viver outras coisas.


RODOPIANTE


Às vezes eu me pego pensando qual o jeito mais psiquicamente saudável de viver. Como se antes de cada ação, eu ponderasse a dor emocional que isso poderia me trazer depois e quanto dela precisaria ser elaborada futuramente. No fim acho que tais questões não são fatores determinantes, mas eu sempre matuto. Mais difícil do que aprender a andar é desaprender. Como é isso de alta da terapia? Um novo dia, uma nova velha questão a ser trabalhada trabalhada e trabalhada. Buscando viver me questionando menos, me parece que questiono cada informação de mim mesma como quem — sempre — foge. Até o próprio olho do furacão é fuga quando essa é a única, mesmo que rodopiante, paisagem que a gente conhece.

DRAMA


Voltar pra minha própria vida me deprime. De um jeito meio mesquinho comigo mesma, como sempre, como se o amor só fosse bom se doesse. Me sinto inquieta o tempo todo, quando sou contrariada me infurno sozinha a ler ou não fazer nada, quase como se cavasse minha própria cova pra transformar uma pequena desalegria em uma dor profundíssima. Que drama. Porque eu não posso simplesmente aceitar que tem dias cheios e outros vazios alguns com sol outros com chuva uns aqui outros lá, e aceitar que a vida é assim mesmo? Porque tenho a necessidade de definir “hoje é um mal dia” quando na verdade é só normal. Parece boicote ou qualquer outra chatice da qual eu me imponho e não consigo fugir. Será que eu vou me enxergar como heroína de mim mesma em algum momento? Me prestei a essa papel pros outros por tempo demais e agora só consigo me sentir a vilã no filme da minha vida, ou esporadicamente a vítima de uma crise existencial injusta, afinal eu sempre faço tudo certo cuido de todo mundo, porque não posso fazer o mesmo por mim? Que necessidade é essa que eu tenho de dizer que a minha vida me deprime como se no dia que 
estive lá, aquilo não pudesse de maneira nenhuma ser considerado parte dela e sim uma fuga? Não pode ser que aquilo e isso juntos componham o emaranhado da minha vida, sem negar um ou outro? Parece que projeto que só ali fora vou poder respirar e enquanto tô aqui mesmo com oxigênio de sobra eu tampo o nariz como quem diz que não vale a pena viver quando não tô acolá, mas não percebo que se não tivesse o aqui, aquilo lá não significaria nada, eu não saberia distinguir. No fim do dia nossa vida é mesmo feita dessa projeção de coisas que a gente gostaria de ser, mas a gente se esquece de perceber que se a gente fosse outro, a gente não seria o mesmo, não quereria as mesmas coisas. É como uma imagem que eu tenho desenhada aqui dentro da minha cabeça, mas que não sei de onde veio, de alguém correndo atrás de um pedaço de carne, este que tá preso em um varão preso em si próprio o que o torna pra sempre inalcançável, a medida que a gente se mexe em direção a qualquer coisa ela se afasta, mas tem toda a paisagem em volta que a gente tá perdendo por focar nesse pedaço de desejo com o qual encafifamos.

CHIQUE


Eu gosto de misturar um pouco de chique com um pouco de triste. Mas isso nem todo mundo entende, chique é ser eu. Quem definiu que chique é cheinho de bens materiais alvenaria e porcelanato? Pra mim chique é tudo o que eu considero bom, bonito, importante ou qualquer coisa que me desperte vontade de elogiar. Eu que defino o meu chique. Acho que cada um tem o seu. Então por favor não me mal-compreendam. Até cafona pode ser algo que eu adoro. Ninguém entende essa minha subversão. Como explicar quem eu sou a essa gente que nunca morou dentro da minha cabeça nem por um minuto sequer?

MESMICE


A gente vive meio inibido de tudo parece que nada nos abala nem entendemos nada até quando a gente começa a sentir tudo e percebe que a gente sente mesmo muitas coisas alegria tristeza raiva tédio e sente do nada sem porque puf raiva e aí se da conta que é assim mesmo anormal é ser inibido e viver como quem não sente nada além da mesmice ou um vazio tão grande. 


Agora me parece que o que eu achava ser um vazio que se apossou do meu corpo na verdade é uma quantidade tão absurda de sentir tudo o tempo todo que como quando a gente gira um arco íris e todas as cores juntas se tornam um borrão branco. O branco é essa quietude estranha, e agora eu tô sentindo todas as cores que destrincham esse trelelê e isso me soa um pouco mais saudável.